OS CHEIROS DE ANGRA
"Guardo, da minha adolescência terceirense, cheiros, aromas e odores que continuam impregnados na minha memória afectiva.
Nos inícios dos anos 70 do século passado, eu era aluno do Liceu da Angra - em fase de iniciação poética e a contas com uma intensa crise sentimental. Nesse tempo, Angra cheirava amar e, mais do que uma cidade sossegada, ela era um modo de ser. Eu vivia na rua das tascas (a Rua de Santo Espírito) e ainda hoje recordo exactamente o forte e intenso cheiro vinho da "Adega Santa", do "Escondidinho" ou da "Adega Biscoitense".
Em dia de São Vapor, o Cais da Alfândega enchia-se de gente, malas, caixotes, sacas e carros de praça. O "Lima" ou o "Carvalho Araújo" e, anos mais tarde, o "Funchal" ou o "Angra do Heroísmo" ficavam fundeados ao largo da baía e pequenas lanchas, num vaivém constante, levavam e traziam passageiros e mercadorias. (Ali, por perto, as águas de esgoto escorriam para o mar e serviam de engodo para pescadores de todos os dias... E pairava no ar aquele cheirinho agridoce...).
Era também em Dia de São Vapor que o Pátio da Alfândega, com a sua esplanada repleta de mesas e cadeiras de vimes, assumia um ar festivo e elegante. Os empregados do Café Atlântico, situado ali ao lado, esmeravam-se no serviço. Com o Monte Brasil em frente, o Pátio da Alfândega era uma verdadeira sala de visitas para todas as classes sociais. Gente da alta sociedade misturava-se com os magalas do Castelo, vendedores ambulantes (o "Já Deu"), concubinas, maricas, reformados, polícias, guardas-fiscais, marítimos, operários, pescadores...
O Pátio da Alfândega cheirava a maresia. E, nas banquetas do Pátio da Alfândega, partilhava-se muita ternura. E quando o desejo era inadiável, ia-se para o Relvão... Ou para o Tanque do Preto...
No Pátio da Alfândega vagueava um nobre vagabundo chamado Leonço, de cabelos e barbas brancas, ele que usva sempre as calças sempre muito puxadas e nunca calçava meias. Contava-se que, um dia, um caixeiro-viajante o havia provocado:
- Então, Leonço, tens umas meias que nunca mais as gastas...
Ao que Leonço replicou:
- Aí é que o meu amigo se engana. É que eu tenho umas cuecas feitas do mesmo tecido e já têm um buraco...
Anexa ao Café Atlântico , havia a barbearia de mestre Rocha, homem afável, metódico e bem disposto, que me cortava o cabelo uma vez por mês e era um "expert" nas táticas futebolísticas. Ainda sinto os perfumes daquela barbearia...
Ali, na Rua Direita, havia um dos cafés mais carismáticos de Angra do Heroísmo: o Chá Barrosa, local local de tertúlias e de muito fumo onde eu ia beber pirolitos...
E havia o cheiro das queijadas da Pastelaria Lusa, cujo proprietário, o incotornável senhor Manuel Pereira da Costa, foi o primeiro "gentleman" que eu verdadeiramente conheci.
Mesmo ao lado, os odores variados da loja de retalho do Basílio Simões & Irmãos Lda. E, a fazer esquina para a Rua da Sé, o cheirinho intensíssimo a café do Berbereia.
Nesse tempo, a Praça Velha era lugar de cavaqueira e local pertencente à estátua de Álvaro Martins Homem e aos engraxadores e taxistas...
Mais à frente e era o cheiro inebriante das flores exóticas e das árvores frondosas do Jardim Duque da Terceira. (Não se podia pisar a relva, sob pena de se pagar uma multa de 20 escudos...). O "Nicks" e o Tio Bailão, recostados à fresca sombra, eram os guardiães do Jardim...
Na Rua da Sé, havia o cheiro dos produtos alimentícios do Mini-Max (a modernidade a chegar a Angra) e do Zeferino. E lá estava (e continua a estar) a Pastelaria Atanásio impregnada dos odores apetecíveis da melhor doçaria terceirense.
E havia a tasca do Bailhão (alcunha de João Machado Bendito), onde comi o melhor pão de milho e o melhor queijo de cabra da minha vida.
Não esquecerei o cheiro da fruta fresca do Mercado Duque de Bragança. E para sempre recordarei os bons filmes que vi no Teatro Angrense ao cheiro nauseabundo do "chulé" dos soldados que povoavam o 4º piso da geral (a "pulga")...
À noite, a caminho da rua do mar para o Cais das Pipas, era aquele cheirinho fétido a urina...
O Joaquim das Horas acertava inveriávelmente no tempo e, para ele, nevoeiro baixo era "morrinha de cão".
E outros cheiros existiam. Ia-se para o Liceu com versos na algibeira e com discos do Zeca Afonso debaixo do braço. Havia intensa actividade cultural. Dentro e fora do Liceu e do Seminário. Escrevi a minha primeira prosa no "Vida Académica". Outros estudantes, mais velhos do que eu e já finalistas - o Marcolino Candeias, o Rui Rodrigues, o Luiz Fagundes Duarte e outros - eram considerados uma "cambada de comunistas", segundo o reitor Eliseu Pato François... Falava-se em surdina contra a Gerra Colonial. As reuniões clandestinas em casa do dr. José Bretão (a que eu assistia sem perceber patavina), o programa "Vampiros" e as crónicas corajosas do padre Coelho de Sousa aos microfones do Rádio Clube de Angra, as "recomendações" poéticas que nos dava Emanuel Félix eram já o prenúncio que Abril estava a chegar... Aliás nesse tempo de opressão e repressão, tudo servia como manifestação cultural e política, até a Tourada dos Estudantes...
Quando, na rua, encontrava Armindo Jorge, meu saudoso professor primário, ele que sempre vaticinou para mim um futuro de historiador, recordava-me o glorioso passado da Ilha Terceira:
- Não te esqueças que aqui já foi só Portugal.
E depois recordava-me o papel da Terceira na resistência ao domínio filipino e na importante acção desempenhada nas lutas liberais. ( O que, hoje, não me canso de lembrar aos meus alunos).
É verdade. Saí um dia da Terceira. Mas a Terceira não saiu de mim.
Não sei se tenho saudades do tempo que lá vivi ou se é da idade que tinha nesse tempo... O que sei é que, em termos culturais, continuo a ser profundamente terceirense."
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Victor Rui Dores
in Revista do DI